Esse texto possui spoilers sobre o novo episódio.
Escrito por: Pedro Rubens
Quando Cidinho e Doca lançaram a música “Rap da Felicidade”, talvez não tivessem a noção de que esse seria um hino atemporal, utilizado em inúmeros contextos, mas, sobretudo, como uma música de resistência. Ao som dos primeiros versos dessa canção, a mente já se transporta para uma realidade não tão distante, porém caótica o suficiente para fazer com que a imaginação sobreponha com outras imagens. Afinal, encarar o horror de uma matança não é das melhores coisas.
O quinto episódio de Cidade de Deus: A Luta Não Para é avassalador e devastador ao mesmo tempo que consegue ser apoteótico e poderoso. Seguindo do exato ponto onde o capítulo anterior termina, o BOPE se encaminha à comunidade enquanto as portas se fecham e as pessoas são obrigadas a se refugiar. O horror da guerra está apenas começando.
A aplicação da fé – e o contraste das diferentes religiões – é um dos melhores artifícios utilizados na série. A oração dominical, ensinada por Jesus, é a trilha sonora que conduz os Caveirões do BOPE enquanto seguem rumo à CDD. É sacro o uso metalinguístico de um elemento religioso em contraponto às ações que vão em sentido oposto ao Sagrado.
Enquanto os ameaçadores carros da polícia especializada chegam e são televisionados, Bradock se prepara para o combate. Ao deixar Gerusa sozinha – e desesperada –, vai em busca da paz, mesmo que para isso precise enfrentar a guerra. Entrelaçado a tudo isso, Lígia e Buscapé descobrem que o nome da advogada do novo chefe da CDD é apenas um de muitos, e o próximo passo é descobrir qual o verdadeiro e seguir a investigação.
O assombro invade a comunidade quando uma voz soa pelo megafone dizendo:
“Atenção, morador, sai da rua que o Caveirão está passando para levar a tua alma. Não tem escapatória, quem tiver armado vai morrer.”
A dualidade desse anúncio só constata aquilo que tantas pessoas já tentaram alertar e mais adiante o próprio Buscapé reafirma: a bala nunca é perdida, ela sempre vai atingir um pobre, negro e favelado. O Caveirão surge como uma espécie de presente de grego e seus projéteis não querem saber onde irão acertar, desde que consiga êxito: ceifar a vida daqueles que são considerados bandidos. E, conforme dito, o aviso é para todos os moradores, logo, todos podem se enquadrar como os respectivos alvos dos projéteis.
Quando a guerra começa, o que ecoa são os tiros, gritos e pessoas desesperadas que não sabem o que fazer para conseguirem sair ilesos daquela situação. Nessa tentativa, Buscapé vai ao encontro de Leka e sua mãe para tirá-las de casa, mas infelizmente não consegue, porque a comunidade já está completamente invadida. Cansado de não fazer nada eficaz, opta por colocar em prática o que faz de melhor: fotografar as atrocidades que acontecerão naquele que um dia já foi seu lar.
Quem também sai numa busca desenfreada para proteger os moradores é Barbantinho. Ele, Berê e Buscapé se juntam em dado momento e seguem rumo ao Secretário de Segurança que, com seu filho, foram para a entrada da CDD acompanhar de perto as ações do BOPE. Junto a alguns jornalistas que fazem transmissões ao vivo para a mídia nacional, o representante do Estado indica – com belas palavras – qual a melhor opção para resolver o problema: matar.
Neste ponto, o trio da comunidade é escorraçado e Berenice encara tanto o Secretário quanto os policiais e mostra que aquela é uma área onde eles não têm vez. Diante disso, um pequeno confronto se inicia e Barbantinho é agredido, ao passo que o Chefe de Estado usa como base para fundamentar sua crítica: há pessoas que se fazem de bom moço, mas escondem que são bandidos.
Enquanto isso, a polícia segue invadindo casas, barracões, becos e vielas. Numa dessas invasões, Delano – que já está se sentindo afligido por ser um dos representantes do ódio no seu lar – vai na frente e, ao ver alguns moradores armados, orienta que vão embora. O que ele não esperava é Santos (Jeff D Paula), seu companheiro de fardamento, que intervém matando aqueles que deveriam ter fugido. Sendo assim, o policial e morador da CDD é afastado da invasão.
Quando Bradock chega e traz consigo uma tempestade de tiros, a narrativa do episódio começa a escalar de forma avassaladora. Entre bombas de gás, gritos, lágrimas e muito desespero, policiais de um lado e a gangue do novo chefe da comunidade do outro, Buscapé entende que a melhor opção é sair daquele cerco e atravessar o campo de guerra onde ele, Berê e Barbantinho ficaram encurralados. Ao chegar do outro lado – fisicamente ileso – passa a chamar os outros dois amigos que seguem o mesmo rumo, porém não o mesmo destino.
Uma cena sem muitos artifícios ou exageros visuais, sem fala ou efeitos estrambólicos, apenas três atores, uma bomba de gás que está se dissipando e mãos levantadas em busca de socorro. Buscapé e Berê ao chão com o corpo de Barbantinho estirado sobre eles, vítima de uma bala perdida. Um flashback. Um Caveirão com dois moradores da CDD se despedindo – a contra gosto – de maneira cautelosa e genuína daquele que agora seria mais um número nas estimativas. No hospital, todos no aguardo da notícia que absolutamente ninguém gostaria de ouvir: Barbantinho não resistiu ao projétil que cumpriu sua missão.
Vestidos de branco, segurando um caixão branco que levava sobre si o Machado de Xangô, a comunidade segue em cortejo fúnebre. O silêncio se esvai quando MC Leka encara um policial e externaliza através da música uma síntese do que todos aqueles personagens estavam pensando:
“Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”
Tal cena deve repercutir, viralizar, viajar o mundo todo e voltar trazendo toda a ovação que a equipe por trás de Cidade de Deus: A Luta Não Para merece. A aplicação sinestésica é feita com maestria e, sem sombra de dúvidas, representa muito bem toda a ideia por trás da série. Mas com o ego ferido, os policiais optaram por investir contra o povo e impedir o enterro de Barbantinho. Assim, a guerra recomeça e, enquanto carros e pneus são queimados, Delano tenta intervir e é atacado, enquanto uma voz grita e ganha espaço, crescendo e tomando as rédeas da situação. O nome dela é Berenice.
Após a saída do BOPE da comunidade, o excelentíssimo vereador Israel Cavani, na Câmara de Vereadores, dedica seu tempo de fala para investir contra a CDD novamente, bem como, para homenagear o falecido dando seu nome a uma praça. Uma salva de palmas para a demagogia!
Enquanto Bradock vê-se ameaçado em rede nacional e promete retaliação, Barbantinho revela a foto de Gerusa e Israel se beijando, que havia sido capturada no momento em que a invasão à comunidade estava iniciando. Nesse ínterim, Lígia descobre que o seu aliado na caça à Mineira, Felipe, foi assassinado e que o padre está se sentindo acuado. Ao ir em busca dele, descobrem que Touro já o havia capturado e ameaça-os.
No Batalhão de Polícia, Delano é acuado por Santos e o agride, sendo afastado do cargo. Ao chegar em casa e questionar sobre sua paternidade, Cinthia segue insistindo em não relevar, mas assume que foi convidada para prosseguir com a candidatura de Barbantinho. Entretanto, o episódio finaliza quando a mãe do ex-policial diz que só há uma pessoa capaz de seguir adiante com essa luta: Berenice. O caminho está traçado.
O quinto – e melhor episódio – de Cidade de Deus: A Luta Não Para é, por si só, uma apoteose de acontecimentos capazes de ultrapassar as telas e trazer novamente para o debate o que já foi discutido, mas deixado de lado. Esse é um episódio com poder social, econômico, político e artístico. O nível foi elevado, e agora que o dedo foi posto sobre a ferida, ela precisa ser tratada.
Nota: 9,5